Disciplina - Geografia

Geografia

20/11/2015

Lama avança rumo ao mar

Lama de Mariana avança rumo ao mar e revolta a população


Por Raphael Gomide, Aline Ribeiro e Sérgio Garcia com Thaís Lazzeri

Em uma reunião na segunda-feira, dia 16, para discutir o maior desastre ambiental da história da mineração no país, os executivos da Samarco foram apresentados ao espírito aguerrido da tribo krenak, um ramo dos botocudos temido desde os tempos de colônia. Pintados para a guerra, os índios se encarregaram de levar o lanche para o encontro com os representantes da empresa, responsável pela barragem que vazou rejeitos há três semanas em Minas Gerais, deixando 11 mortos e 12 desaparecidos. Uma caixa de papelão reunia o repasto: uma pilha de peixes inertes e fétidos recolhidos do Rio Doce, que atravessa a reserva indígena. Para beber, copos contendo uma água barrenta e imunda, extraída do mesmo leito fluvial. “Eles se assustaram e sentiram na pele o que nós estamos sentindo”, diz Itamar Krenak, um dos 450 integrantes da aldeia, temeroso de que o Rio Doce jamais se recupere da devastação causada pelo tsunami lamacento. “O rio é nosso sangue, nossa religião, nosso sustento. Agora ele está envenenado, sem vida”, afirma. Dias antes, o grupo havia interrompido o tráfego numa ferrovia para forçar a empresa a marcar a reunião.

Enquanto os krenaks protestavam, as águas agora viscosas do Rio Doce seguiam seu roteiro inexorável em direção à foz, no Espírito Santo, afetando pelo caminho a fauna, a vegetação e a população ribeirinhas. Para piorar, a blindagem ou o desencontro de informações serviam para aumentar as incertezas em torno do episódio. Inicialmente, a Samarco, empresa formada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, informou que duas barragens haviam se rompido em Mariana e que uma terceira – a maior de todas – estava intacta.

Mas, em entrevista na terça-feira, técnicos da empresa disseram que apenas o Reservatório do Fundão havia extravasado – e admitiram que outras duas barragens, Germano e Santarém, corriam risco de rompimento. Kleber Terra, diretor de Operações e Infraestrutura da Samarco, chegou a afirmar que “não é o caso de desculpas à população” pelo desastre. Outro ponto de interrogação envolve a composição dos rejeitos. Embora a Samarco afirme que não há substâncias nocivas à saúde, amostras coletadas pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas em 13 diferentes pontos sugerem a presença de alguns metais acima do limite permitido por lei. Entre eles, arsênio, cádmio, chumbo, cromo, níquel, cobre e mercúrio.

Com seus mais de 850 quilômetros de extensão, o Rio Doce é essencial para a região. A imundície em seu leito acarretará danos inimagináveis para a agricultura, a pesca, o turismo, o setor industrial, o transporte e o lazer. Ele abastece cidades como o município capixaba de Colatina, que se vê às voltas com o racionamento de água. É natural, portanto, a revolta da população que teve sua vida revirada pelo desastre. Prefeito de Baixo Guandu, no Espírito Santo, Neto Barros (PCdoB) fechou, com meia dúzia de tratores, a centenária ferrovia que liga o Porto de Vitória a Minas Gerais. Só assim conseguiu que o ministro da Integração Nacional, Gilberto Occhi, e executivos da Vale e da Samarco fossem a uma reunião em seu gabinete na segunda-feira, 11 dias após a eclosão do mar de lama. “Tomei a atitude para despertá-los, já que não tinham prestado solidariedade até então”, diz Barros, que foi obrigado por uma ordem judicial a liberar a ferrovia.

Após a tragédia, a Samarco anunciou reparos emergenciais nas estruturas vulneráveis. Para ter uma ideia da ordem de grandeza da obra, o material usado na estabilização será transportado em 50 mil viagens de caminhão. O Ministério Público Federal e o Estadual mineiro fizeram um acordo com a empresa para a criação de um fundo ambiental de R$ 1 bilhão. A Samarco tem até esta semana para depositar a primeira metade do dinheiro. Ela também foi multada pelo Ibama em R$ 250 milhões, mas pode recorrer da decisão. Na área das autuações ambientais, o governo não arrecada nada. Em 2014, foram lavrados R$ 4,8 bilhões em multas no país. Apenas R$ 140 milhões foram, de fato, parar nos cofres da União.

Para acelerar o processo na esfera judicial, o Ministério Público Federal criou uma força-tarefa com sete integrantes. A expectativa é que, desta vez, os resultados apareçam. Segundo o procurador regional da República José Adércio Leite Sampaio, em 2012 o MP mineiro ajuizou 57 ações civis públicas determinando reformas em diversas barragens, mas não se sabe se elas foram cumpridas. No ano passado, Celso Luiz Garcia, superintendente em Minas Gerais do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão encarregado de fiscalizar a atividade mineradora no Brasil, queixou-se a Sampaio de não ter técnicos suficientes para realizar o trabalho. O MP então encaminhou um ofício ao ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, relatando a precariedade. Em junho deste ano, Garcia foi alçado a diretor-geral do DNPM, em Brasília, mas durou pouco no cargo. Na quarta-feira, alegou problemas de saúde e pediu demissão. Em outra frente dessa batalha nos tribunais, que se anuncia bilionária, o Ibama elabora um relatório contabilizando os prejuízos para ser anexado à ação civil pública a cargo da Advocacia-Geral da União.

Apesar de uma legião de cientistas e pesquisadores se debruçar sobre a tragédia, ainda é precipitado quantificá-la. Mas não é catastrofismo afirmar que há danos irreversíveis. Territórios totalmente cobertos pela lama devem virar “cemitérios biológicos”, diz o pesquisador Marcos Freitas, do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais, ligado à Coppe, o programa de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É o caso do vilarejo de Bento Rodrigues, que, submerso na lama, será reconstruído em outro lugar. O futuro do Rio Doce ainda é incerto. Na terça-feira, sem citar custos ou prazos, a presidente Dilma Rousseff anunciou um plano “de longo prazo” para a recuperação do rio, em parceria com os dois Estados afetados pelo rompimento.

Ao longo da semana, houve rumores de que a marcha da água emporcalhada rumo ao mar poderia chegar até mesmo ao arquipélago de Abrolhos, situado na costa entre a Bahia e o Espírito Santo. É pouco provável, no entanto, que a sujeirada atinja o parque marinho. “Abrolhos fica mais de 200 quilômetros acima da foz do Rio Doce, e as correntes marítimas vão do norte para o sul”, diz Paulo Cesar Rosman, pesquisador da Área de Engenharia Costeira e Oceanográfica da Coppe. A chegada da lama à foz do Rio Doce, em Linhares, Espírito Santo, vai afetar uma área importante de formação de corais. “É uma região de biodiversidade riquíssima. Ali começam as grandes formações coralinas do Brasil”, afirma José Lailson, professor de oceanografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O escoamento da lama foi prejudicado pela baixa vazão do rio, que praticamente fechou a foz. Há risco de a lama ficar represada, não se diluir no mar e afetar a recuperação das áreas internas do estuário, berçário de peixes importantes para o ambiente e a economia local.

Além dos cientistas e ambientalistas que logo acorreram ao local, uma tropa de voluntários se prontificou a ajudar na recuperação do Rio Doce. Desse mutirão faz parte o fotógrafo e empresário Édson Negrelli, que mobilizou centenas de pessoas em Colatina para um projeto que coletou e transpôs mais de 100 mil peixes do Rio Doce para uma lagoa ligada a ele por um canal. Na última quarta-feira, o ambientalista se equilibrava na carroceria de um caminhão enquanto mergulhava peixes do Rio Doce em caixas-d’água de 1.000 litros. Nesse mesmo dia, um grupo de 100 pessoas escavou um piscinão ao lado do leito, para receber mais pescados. “Aonde a lama chega tudo morre. Os peixes morrem em questão de minutos”, diz Negrelli. Outro morador de Colatina, o pescador Sebastião Oliveira era o retrato da desolação. Há 40 anos ele tira seu sustento daquele rio. Ao ver três peixes inchados lado a lado no cais, ele não resistiu e chorou. “Isso é um crime! Isso é um crime!” Resta a esperança de que o crime seja punido, e um dia o rio consiga retomar seu curso vital.
Esta notícia foi publicada em 19/11/2015 no site epoca.globo.com. Todas as informações são de responsabilidade do autor.
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