Disciplina - Geografia

Geografia

31/08/2017

“A Cidade e as Serras”

“A Cidade e as Serras” questiona os valores da sociedade urbana

Por Leila Kiyomura

Com o questionamento dos valores políticos, sociais e econômicos da sociedade urbana, A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, tornou-se um clássico da literatura portuguesa. De 1901, quando foi publicado, até os dias de hoje, o livro intriga o leitor com os conflitos, a insatisfação, os males da civilização, o vazio e o tédio da vida urbana.

“Eça de Queirós foi ajustado ao que era o modo de escrever, digamos, normal do seu tempo na Europa. Homem desse tempo, ele captou-lhe a cor própria e a incorporou à sua prosa incomparável, transmitindo-a às sucessivas gerações de leitores”, observou o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), um dos principais analistas da obra do escritor português. “Daí, talvez, a relativa constância do efeito que exerce sobre estes, fazendo com que leiamos hoje de maneira relativamente próxima à dos nossos pais e avós.”

A Cidade e as Serras foi o último livro de Eça. Ele não teve tempo de dar o seu toque final com a sua revisão sempre perfeita, porque morreu em 16 de agosto de 1900. Da página 126 em diante, as provas não passaram pela sua releitura exigente. Não deu a última demão. O romance foi escrito em primeira pessoa. O narrador José Fernandes conta a história do protagonista Jacinto de Tormes, que nasceu e foi criado em Paris, mas era filho de fidalgos portugueses da cidade de Tormes.

No primeiro parágrafo, o narrador descreve, em breves linhas, o amigo protagonista. E o lugar onde vive:

“No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei d. Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº 202.”

O narrador continua:

Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D. Galião, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo.

Vestibulando, se você ler os parágrafos seguintes do livro, não vai conseguir desgrudar os olhos do livro. Vai adentrar a Paris do século 19, na época em que a cidade era a capital do mundo, com a sua arte, cultura e burguesia. E logo vai perceber o confronto entre a vida urbana francesa e o cotidiano agrário português. Um confronto sintetizado no título A Cidade e as Serras.

Tema que Antonio Candido resgata no artigo intitulado “Entre campo e cidade”, de 1945, no centenário do nascimento de Eça de Queirós. Na época, o crítico literário destacou a importância da leitura da obra completa do escritor. Em 1964, o texto foi republicado no seu livro Tese e Antítese, com outros cinco textos sobre a obra de diferentes romancistas das literaturas inglesa, francesa, portuguesa e brasileira. O texto de Antonio Candido é muito importante para os estudantes que quiserem mergulhar na obra queirosiana. Para o crítico, A Cidade e as Serras é a obra-prima de Eça.

Na Universidade de São Paulo, o professor Helder Garmes, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), tem formado doutores especializados em Eça de Queirós. No artigo “Eça de Queirós, cenas da vida portuguesa”, publicado na revista Entre Livros – que Garmes escreveu em parceria com o professor José Carlos Siqueira, seu orientando de doutorado –, fica claro que o foco da crítica de Eça de Queirós se estende de Portugal para toda a Europa. “Uma das peculiaridades do liberalismo português é o fato de grande parte da elite tradicional e endinheirada portuguesa viver fora de Portugal. Quando retorna, limita-se a cuidar de seus bens, como o faz Jacinto, sem perceber o papel que deveria cumprir no desenvolvimento material da nação”, observa. “Tanto esta quanto aquela elite já citadina de Os Maias se eximem de qualquer responsabilidade sobre a nação, cuja simbologia nacional as tem por referência, como fica demonstrado em A Ilustre Casa de Ramires. Portanto, quer valorize folcloricamente suas ‘raízes’, como o faz Jacinto, quer considere tudo em Portugal muito provinciano, como o faz Carlos da Maia, a elite portuguesa de base econômica feudal e de pensamento liberal usufrui das vantagens propiciadas por esse lugar ambíguo, discursando como um político liberal e agindo como um monarca absolutista.”

Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D. Galião, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo.

Se você ler os parágrafos seguintes do livro, não vai conseguir desgrudar os olhos do livro. Vai adentrar a Paris do século 19, na época em que a cidade era a capital do mundo, com a sua arte, cultura e burguesia. E logo vai perceber o confronto entre a vida urbana francesa e o cotidiano agrário português. Um confronto sintetizado no título A Cidade e as Serras.
Eça de Queirós – Foto: Reprodução

Tema que Antonio Candido resgata no artigo intitulado “Entre campo e cidade”, de 1945, no centenário do nascimento de Eça de Queirós. Na época, o crítico literário destacou a importância da leitura da obra completa do escritor. Em 1964, o texto foi republicado no seu livro Tese e Antítese, com outros cinco textos sobre a obra de diferentes romancistas das literaturas inglesa, francesa, portuguesa e brasileira. O texto de Antonio Candido é muito importante para os estudantes que quiserem mergulhar na obra queirosiana. Para o crítico, A Cidade e as Serras é a obra-prima de Eça.

Uma das peculiaridades do liberalismo português é o fato de grande parte da elite tradicional e endinheirada portuguesa viver fora de Portugal.”

Na Universidade de São Paulo, o professor Helder Garmes, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), tem formado doutores especializados em Eça de Queirós. No artigo “Eça de Queirós, cenas da vida portuguesa”, publicado na revista Entre Livros – que Garmes escreveu em parceria com o professor José Carlos Siqueira, seu orientando de doutorado –, fica claro que o foco da crítica de Eça de Queirós se estende de Portugal para toda a Europa. “Uma das peculiaridades do liberalismo português é o fato de grande parte da elite tradicional e endinheirada portuguesa viver fora de Portugal. Quando retorna, limita-se a cuidar de seus bens, como o faz Jacinto, sem perceber o papel que deveria cumprir no desenvolvimento material da nação”, observa. “Tanto esta quanto aquela elite já citadina de Os Maias se eximem de qualquer responsabilidade sobre a nação, cuja simbologia nacional as tem por referência, como fica demonstrado em A Ilustre Casa de Ramires. Portanto, quer valorize folcloricamente suas ‘raízes’, como o faz Jacinto, quer considere tudo em Portugal muito provinciano, como o faz Carlos da Maia, a elite portuguesa de base econômica feudal e de pensamento liberal usufrui das vantagens propiciadas por esse lugar ambíguo, discursando como um político liberal e agindo como um monarca absolutista.”

Os professores Garmes e Siqueira contextualizam a realidade apontada pelo escritor português. “Em um artigo publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 6 de dezembro de 1894, Eça de Queirós faz a seguinte projeção sobre a já então crescente migração de trabalhadores chineses pelo mundo: ‘Nas fábricas, nas minas, no serviço dos caminhos de ferro, não se verão senão homens de rabicho, silenciosos e destros, fazendo por metade do salário o dobro do serviço – e o operário europeu, eliminado, ou tem de morrer de fome, ou fazer revoluções, ou de forçar os estados a guerras com quatrocentos milhões de chineses. (…) Em cada centro industrial da Europa haverá assim um permanente e atroz conflito de raças’. Quando comparamos tais observações com as notícias que lemos diariamente nos jornais sobre os conflitos étnicos, não só na Europa, mas em todos os cantos do mundo, resultantes, em sua quase maioria, da disputa pelo mercado de trabalho, constatamos que Eça não foi simplesmente um grande retratista da realidade portuguesa do século 19, mas sobretudo um grande analista das consequências da internacionalização das formas de produção, quer no âmbito da luta de classes, quer no âmbito dos conflitos culturais.”

O livro A cidade e as serras, de Eça de Queirós, está disponível gratuitamente no seguinte link: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1790

Esta notícia foi publicada em 07/08/2017 no jornal da USP. Todas as informações são de responsabilidade do autor.
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